Para ler ao som de “Os outros”, Leoni.
Meu calendário foi zerado no dia em que você se foi. Posso contar a minha vida por esses dois períodos - o antes e o depois de você. O antes é tudo simplificado. São lembranças meio vagas, meio opacas, como fitas velhas de VHS. Foram dias nublados dos quais nem me lembro direito. E se não trouxesse algumas cicatrizes poderia jurar que não foram reais. Tem uma no meu pé direito que prova que alguns anos atrás, na época agora denominada Antes de Você (ou AV, pra encurtar) me acidentei de forma estranha com um prato num acampamento. Tenho muitas histórias pra contar dessa época, algumas eu só sei porque me contaram. Mas muitas delas merecem créditos de contos ou lendas, não sei. São meio desfocadas. Lembro de ter muitos objetivos e sonhos, alguns bons amigos, muitas risadas, fins de semana atarefados. Alguns desapontamentos, claro. Mas hoje são contados sem traumas. Não deixaram danos permanentes.
Aí vem um período um tanto confuso que eu poderia chamar de entre-épocas. Mais ou menos como a história e Jesus Cristo, entende? Se estivéssemos falando dele, ele agora estaria andando sobre as águas ou multiplicando uns peixes. Eu estaria encontrando você. E eu poderia chamar isso de milagre porque é assim que chamam as coisas inacreditáveis e sem explicação que se deve agradecer todos os dias. Então vem o caos, que eu também poderia chamar de crucificação porque foi como eu senti. Só que meu coração não voltou a bater depois de três dias. E ninguém foi salvo por isso. Na verdade, depois “disso” eu me sinto cada dia mais sem rumo. Foi o fim e todo fim trás em si algo de melancólico e deprimente porque significa que alguma coisa está sendo perdida. É, fins podem indicar o começo de alguma outra coisa mas esses começos nem sempre são tão bons quanto aquilo que terminou.
Então nos encontramos onde eu, e de certa forma você, estamos. Fácil de presumir. Estamos no período Depois de Você (ou DV, se preferir). Têm sido dias tão claros e tão marcados. Cada dia é como uma fotografia que penduro na parede e com o tempo posso ver sua imagem sem nem mesmo olhar pra ela. O tempo anda rápido nessa nova época e eu não sei o porquê de tanta pressa quando é óbvio que, sem você, não irei a lugar nenhum. A vida continua mas continua daquele jeito, sabe? Meio que falhando. Ainda tenho alguns objetivos e sonhos mas tenho que te apagar deles antes de tirá-los da gaveta. Sei que posso contar com alguns bons amigos. Não os mesmo nem tantos quando antes mas definitivamente melhores. Risadas? Sempre, é claro. Você sabe que sei ver a graça até na desgraça. Admito que meus fins de semana saíram do ritmo mas isso é questão de tempo até adaptar a nova época. Quanto aos desapontamentos só me resta um. Nenhum outro tem a menor significância, nem me abalam, nem um arranhãozinho sequer. E não é o que você pensa. Não é a sua ausência que me machuca. É justamente o fato de haver uma ausência. Olha, seria muita presunção sua achar que meu vazio tem exatamente suas medidas e minha mão só fica bem com a sua. Tenho quase certeza de que há alguém perfeito pra ocupar seu lugar.
E esse é o problema.
Porque quando conheço alguém me pergunto se é melhor que você, se me completa como você completava, se tem ou não as qualidades que eu tanto admirava em você, se tem ou não os defeitos que eu ignorava em você. Percebe? Então conte quantas vezes eu digo “você” e talvez entenda. Até quando você não está as coisas são sempre sobre você. E eu sei que não vão mudar. Quem iria contentar-se com menos depois de ter vivido a perfeição? Se com você era tudo, sem você vai ser sempre “quase” ou “quase nada” ou simplesmente “nada”. Um “quase” amor, uma poesia incompleta, um filme sem final, um livro faltando páginas. Os menores gestos, as palavras mais insignificantes vão gerar uma comparação “quase” involuntária.
É porque o Depois de Você já existe. Então o Sem Você se torna fisicamente impossível. E sem você, meu bem, nada faria sentido.
“Às vezes não consigo compreender como outro pode amá-la, ousa amá-la, uma vez que eu a amo tão unicamente, tão profundamente, tão perfeitamente; uma vez que nada conheço, nada sei e nada tenho, além dela.”
Trecho em transcrição literal de Os Sofrimentos do Jovem Werther, J.W. Goethe